2 de maio de 2015

(IN)APLICABILIDADE DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO EM ÁREAS "PRIVADAS"


Em contato pelas redes sociais, o professor Henrique Quintanilha sugeriu o artigo do professor Julyver Modesto de Araújo sobre “(In)aplicabilidade do Código de Trânsito brasileiro em áreas ‘privadas’”.  Segundo o professor, não se trata de uma defesa de sua conduta perante a repercussão de ter estacionado numa vaga para idoso em um Shopping da cidade de Salvador, mas para melhorar o embasamento a quem interessar. “A discussão é sobre a competência da Transalvador, do uso de recurso público pra fazer fiscalização que cabe ao shopping e não JULGAR com sentença de morte quem por acaso parou numa vaga dessa”, disse o professor.

O blog solicitou do professor Henrique Quintanilha um artigo envolvendo o tema. Quintanilha aceitou e oportunamente nos contemplará com o solicitado. Garantiu que tomará providências jurídicas sobre a competência excessiva do órgão da Prefeitura. “Essa semana vou pedir a inconstitucionalidade disso, vamos ver o que o TJ e o STF vão dizer”, concluiu nosso papo. 

LEIA O ARTIGO ABAIXO

por Julyver Modesto de Araujo

Toda Lei possui um objeto de regulamentação, algo que dá existência à norma, que justifica a necessidade de se impor, pelo Estado, determinadas regras de comportamento aos cidadãos por ela atingidos. Se observarmos qualquer ação legislativa, sob este prisma, poderemos identificar qual é a sua finalidade, bem como os seus destinatários.

A Constituição Federal, Lei máxima de nosso país, objetiva estabelecer a estrutura do Estado (ou seja, como ele deve se constituir), a organização de seus órgãos, os direitos e garantias dos indivíduos e todas as regras básicas para que haja um funcionamento adequado, com respeito aos direitos e deveres de todos. O Direito Penal tem por objeto determinar o que é proibido ao cidadão, estabelecendo as infrações penais (crimes), as sanções correspondentes e as regras para que haja a efetiva punição aos que descumprirem tais mandamentos. O Direito Tributário tem como objeto a prestação pecuniária compulsória, chamada de tributo, devida pelo indivíduo ao Estado. Assim ocorre com qualquer Lei que nos dispusermos a analisar.

Neste sentido, qual é o objeto da legislação de trânsito? Será que bastaria que, em determinado local, houvesse a circulação de veículos, por exemplo, para se fazer possível a aplicação desta Lei específica? Entendo que não, conforme explicarei adiante.

Tal questionamento é por demais oportuno, tendo em vista ser comum se indagar se o Código de Trânsito poderia (ou não) ser aplicado em áreas privadas, como estacionamentos de supermercados, shopping center e outros estabelecimentos particulares; pátios de empresas; interior de postos de gasolinas; áreas de embarque e desembarque de terminais rodoviários e aeroportos; vias internas de cidades universitárias, entre tantos outros exemplos. 

Para sermos o mais objetivo possível, sem nos perdermos em divagações desnecessárias, e oferecer subsídio para aqueles que aderirem à mesma conclusão sobre a qual me posiciono, procurarei ser sucinto e didático, explorando a resposta na própria Lei, e apresentarei alguns comentários sobre duas questões pontuais e muito recorrentes: áreas aeroportuárias e vagas especiais de estacionamento em estabelecimentos privados.

Objeto da Legislação de trânsito: Utilização das vias públicas

A “utilização das vias públicas” constitui o objeto da legislação de trânsito, na medida em que se pode extrair tal raciocínio do artigo 1º do Código de Trânsito Brasileiro: “O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se por este Código”, ou, lendo-se o que realmente importa, do final para o início, “o Código de Trânsito rege a utilização das vias abertas à circulação”.

Isto significa que esta legislação especial não se destina a regular qualquer circulação de veículos automotores ou conflitos entre veículos e pessoas, independente do local em que isto ocorra; se, por exemplo, alguém entra com uma motocicleta no pátio de uma empresa e atropela um pedestre, responderá pela lesão corporal causada, da mesma forma que responderia se tivesse utilizado, em vez do veículo, um pedaço de madeira para a agressão física; sua conduta estará sujeita às regras do Direito penal e não às constantes do Código de Trânsito Brasileiro.

Se o Código de Trânsito fosse aplicável a todo e qualquer lugar de tráfego de veículos e pessoas, indistintamente, não haveria necessidade de se prever duas exceções legais, nas quais, ainda que se tratem de áreas privadas, incidirá as normas de trânsito, por expressa previsão normativa: I) as vias internas pertencentes aos condomínios constituídos por unidades autônomas (parágrafo único do artigo 2º); e II) as áreas físicas de portos organizados, inclusive nas áreas dos terminais alfandegados, nas estações de transbordo, nas instalações portuárias públicas de pequeno porte e nos respectivos estacionamentos ou vias internas, mediante convênio entre autoridade portuária e os órgãos de trânsito, para fins de fiscalização (artigo 7º-A, incluído pela Lei n. 12.058/09).

Portanto, toda vez que houver a necessidade de se analisar a aplicabilidade do Código de Trânsito a determinada situação, a pergunta que se deve fazer é a seguinte: o local em que a conduta sob apreço ocorreu é uma via aberta livremente à circulação? E mais: está aberta, porque deve ficar aberta? Faço esse destaque porque existem locais que têm o acesso franqueado apenas de maneira esporádica, mantendo-se a possibilidade de controle pelo proprietário daquele espaço; ora, se alguém tem o condão de decidir quando o acesso é liberado e quando ocorre a restrição, a utilização do local está limitada à sua vontade e, portanto, não estará sujeita às normas de trânsito.

Seguindo-se esta premissa, outra não será a conclusão: o Código de Trânsito NÃO é aplicável em áreas privadas, como os locais citados anteriormente (estacionamentos de supermercados, shopping center e outros estabelecimentos particulares; pátios de empresas; interior de postos de gasolinas; áreas de embarque e desembarque de terminais rodoviários e aeroportos e vias internas de cidades universitárias).

Embora seja comum a cobrança de fiscalização de trânsito nestes espaços, há que se considerar que não há “meia competência” do órgão de trânsito responsável; ou se aplica o Código de Trânsito em sua totalidade, ou não há qualquer incidência territorial do CTB. Se a área é privada e, destarte, possui um proprietário, o órgão de trânsito não pode aplicar a penalidade de multa, do mesmo modo que não tem atribuição para planejar, projetar e regulamentar o trânsito de veículos, pessoas e animais, ou implantar a sinalização de trânsito, conforme os seus critérios.

Áreas aeroportuárias

Recentemente, o Conselho Nacional de Trânsito publicou a Resolução n. 482/14 (DOU de 11/04/14), estabelecendo que "as vias de acesso aos aeroportos abertas à circulação, integrantes das áreas que compõem os sítios aeroportuários, são de competência e circunscrição do Município no qual estão inseridas"; deixando em dúvida, todavia, se o termo "vias de acesso" compreende também as vias internas dos terminais de passageiros ou se são apenas as ruas, avenidas e similares, que possibilitam chegar e sair da área aeroportuária.

Há que se comentar, inicialmente, a impossibilidade jurídica de que o Conselho Nacional de Trânsito discipline um objeto da legislação de trânsito diferente daquele constante na própria Lei (artigo 1º), por meio de um ato normativo infralegal (até porque, quando o legislador assim entendeu necessário, no caso das áreas portuárias, tratou de providenciar o adequado processo legislativo, a fim de incluir o artigo 7º-A ao CTB).

Assim, a interpretação mais sensata sobre a Resolução n. 482/14, é a de que se refere tão somente às ruas, avenidas e similares, que possibilitam chegar e sair da área aeroportuária, não compreendendo as áreas internas dos terminais, como as destinadas ao embarque e desembarque de passageiros, tendo em vista que elas não estão sob circunscrição dos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito, da mesma forma que não está sob circunscrição o restante da infraestrutura aeroportuária, como as áreas de estacionamento e, até mesmo, a pista de pouso e decolagem, já que não haveria lógica em analisar tais espaços separadamente: ou todo o local está sob a circunscrição do órgão executivo de trânsito, ou é, integralmente, de propriedade particular, ainda que de uso comum para os serviços aeroportuários. 

O Plano Nacional de Viação, instituído pela Lei n. 5.917/73, nos fornece a resposta para a questão sobre competência circunscricional, tendo em vista que prevê fazer parte do Sistema Nacional de Viação o Sistema Aeroviário, compreendendo a sua infraestrutura, as redes correspondentes à modalidade de transporte respectiva, suas instalações acessórias e complementares; tal assertiva exclui a possibilidade de gestão administrativa do órgão de trânsito, o que é corroborado pelo artigo 2º da Lei n. 5.862/72, que assim dispõe: "A Infraero terá por finalidade implantar, administrar, operar e explorar industrial e comercialmente a infraestrutura aeroportuária que lhe for atribuída pela Secretaria de Aviação Civil da Presidência da República".

Ora, se compete à Infraero toda a gestão da infraestrutura aeroportuária, não há como atribuir ao órgão de trânsito as competências delineadas no artigo 24 do CTB, que, aliás, não se resumem ao exercício da fiscalização de trânsito e correspondente aplicação de multas de trânsito, mas compreendem outras tantas, como "planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito" (inciso I) e "implantar, manter e operar o sistema de sinalização" (inciso II); isto é, ou o órgão de trânsito municipal tem plena autonomia naquele espaço, desde o projeto de trânsito e implantação dos respectivos sinais viários, ou não pode, exclusivamente, aplicar multas àqueles que descumprem a sinalização ali existente (projetada e implantada pela Infraero), como se fosse possível exercer apenas parte das atribuições do artigo 24.
Trata-se, portanto, de um espaço que, embora de “livre” circulação, assemelha-se à área privada; os terminais de passageiros do Aeroporto possibilitam o tráfego de veículos, única e exclusivamente, por mera liberalidade da administração aeroportuária, que decide, no projeto arquitetônico do local, onde estarão posicionadas as áreas de embarque e de desembarque, bem como os bolsões de estacionamento.

É comum, inclusive, que a sinalização de trânsito das áreas internas do Aeroporto seja implantada pela própria administração aeroportuária, o que, mais uma vez, afasta a possibilidade de aplicação de multas de trânsito pela sua desobediência, de acordo com o inciso III do artigo 24 (competência do órgão municipal para implantar, manter e operar o sistema de sinalização de trânsito) e § 1º do artigo 90 ("O órgão ou entidade de trânsito com circunscrição sobre a via é responsável pela implantação da sinalização, respondendo pela sua falta, insuficiência ou incorreta colocação").

Vagas especiais de estacionamento em estabelecimentos privados

É comum o questionamento sobre a possibilidade (ou não) de se executar a fiscalização de trânsito, no interior de locais privados, como estacionamentos de lojas de conveniência, supermercados, farmácias e shopping, especificamente para verificação da utilização irregular das vagas especiais destinadas a idosos e pessoas com deficiência física, tendo em vista o constante das Resoluções do CONTRAN n. 303/08 e 304/08, que dispõem, respectivamente, sobre as vagas de estacionamento destinadas a pessoas idosas e portadoras de deficiência e com dificuldade de locomoção, nas vias públicas.

Todavia, a reserva destas vagas, em estacionamentos (públicos ou privados) decorre de normas federais, quais sejam, a Lei n. 10.741/03 (Estatuto do idoso) e a Lei n. 10.098/03 (Lei da acessibilidade), as quais criam obrigações aos responsáveis pelos locais de estacionamento, no sentido de se reservar as vagas, nos percentuais exigidos, e, obviamente, cuidar para que tais reservas sejam devidamente atendidas pelos usuários daquele espaço, ainda que não seja possível a aplicação de multa de trânsito, pelo ente privado, aos que estacionarem irregularmente; ou seja, não basta reservar a vaga, por meio de sinalização de trânsito, sendo imperioso a constante vigilância sobre sua utilização. Reservar e não coibir o estacionamento irregular equivale a não reservar e, portanto, tão errado quanto o motorista, é o próprio estabelecimento, que não atende à exigência legal.
Entendo que, conforme o exposto anteriormente, também não há condições de que os órgãos e entidades executivos de trânsito fiscalizem as reservas de vagas em locais privados, com aplicação de multa aos eventuais infratores, por conta do objeto da legislação de trânsito e a consequente inaplicabilidade do CTB a tais locais.

Nem mesmo a ausência do poder de polícia administrativa de trânsito, em relação aos proprietários dos estabelecimentos privados, seria motivo suficiente para que a Administração pública se fizesse presente, na fiscalização do uso irregular das vagas de estacionamento, posto que não é possível aceitar que um agente de trânsito, ao adentrar naquele espaço particular, autue apenas veículos estacionados nas vagas destinadas às pessoas idosas ou com deficiência, deixando de tomar providências em relação a outros descumprimentos das regras de trânsito, como não uso de cinto de segurança, trânsito na contramão de direção, condução de motocicleta sem capacete, ou qualquer outra infração; isto é, ou a legislação de trânsito deve ser aplicada, como um todo, em um determinado espaço territorial, ou não há incidência da norma jurídica.

Assim, defendo o entendimento de que não cabe o exercício da fiscalização de trânsito sobre a utilização das vagas especiais de estacionamento, localizadas em ambientes privados, devendo o Poder público cobrar diretamente dos proprietários dos imóveis, para que adotem medidas que estimulem a obediência às reservas determinadas em lei, sob pena de, não o fazendo, serem diretamente responsabilizados pelo descumprimento das normas federais anteriormente mencionadas, sem aplicação de multa de trânsito aos condutores.

Cabe mencionar um posicionamento contrário ao aqui discorrido: o Departamento Nacional de Trânsito, por intermédio da Nota Técnica 413/2010/CGIJF/DENATRAN, acompanhando o Parecer CONJUR/MIN.CIDADES-282/2010, em resposta à URBS, de Curitiba/PR, em linha oposta à qual defendo, chegou a afirmar que o Código de Trânsito Brasileiro é aplicável às áreas privadas de uso comum, especificamente para permitir a fiscalização da utilização de vagas destinadas às pessoas idosas e com deficiência física, localizadas em estacionamentos privados, o que, todavia, não condiz com o entendimento predominante no Conselho Estadual de Trânsito de São Paulo, que, por várias vezes, já se manifestou pela impossibilidade de aplicação de multas de trânsito em áreas particulares.
Como se vê, o assunto é complexo. Espero ter proporcionado a você, leitor, argumentos suficientes para compreensão e reflexão sobre o tema, independente de sua opinião particular.

São Paulo, 10 de julho de 2014.

JULYVER MODESTO DE ARAUJO, MESTRE em Direito do Estado pela PUC/SP e ESPECIALISTA em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; Capitão da Polícia Militar de SP, atual Chefe do Gabinete de Treinamento do Comando de Policiamento de Trânsito; Coordenador e Professor dos Cursos de Pós-graduação do CEAT (www.ceatt.com.br); Conselheiro do CETRAN/SP, desde 2003 e representante dos CETRANS da região sudeste no Fórum Consultivo por dois mandatos consecutivos; Diretor do Conselho Consultivo da ABRAM e Presidente da Associação Brasileira de Profissionais do Trânsito – ABPTRAN (www.abptran.org); Conselheiro fiscal da Companhia de Engenharia de Tráfego – CET/SP, representante eleito pelos funcionários, no biênio 2009/2011; Autor de livros e artigos sobre trânsito, além do blog www.transitoumaimagem100palavras.blogspot.com.

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