11 de agosto de 2014

O dia em que cuspi na cara de ACM!

Imagens: Marconi de Souza
Belisa Ribeiro, mãe do compositor Gabriel Pensador, me convidou para ser repórter do seu site – “Doces Bárbaros” –, com sede no Rio. Assim que atendi ao telefonema, pensei tratar-se de um trote, afinal, Belisa foi casada com Marcos Paulo, namorou Collor de Mello e, naquela ligação, disse-me de cara que minha coragem era a coisa que mais a encantou até então! Caramba...

Bem, esse fato ocorreu em 1999, assim que fui receber o primeiro dos três prêmios internacionais que ganhei nos Estados Unidos. Outros convites desse tipo vieram-me do eixo Rio-Sampa, mas nada tão sedutor quanto o da mãe de Gabriel Pensador. E confesso: topei na primeira abordagem, até porque ela pagaria quatro vezes mais do que eu ganhava no jornal A Tarde.

Além disso, Belisa não queria dedicação exclusiva e bastar-me-ia escrever apenas duas reportagens por semana. “O Brasil precisa conhecer você, garoto”, disse-me, com sua doce voz ao telefone. Minha esposa ficou eufórica, e não era para menos, afinal, ela assistia aos filhos dormindo em colchões ao chão e segurava o vaso sanitário para não quedar-se ao solo.

Levi Vasconcelos, meu colega de jornal, nos visitava e certa feita caiu desse vaso. Quase lesionado, questionou-me porque eu morava com tanta miséria, e, ao mesmo tempo, construíra uma bela piscina na área verde da casa. Perguntou-me, ainda, se não seria mais sensato ter uma casa com banheiro, cozinha e quartos decentes, ao invés de uma ostentação no jardim.

– Com certeza... Mas a piscina reflete apenas a moldura do que ganhei até agora com os prêmios jornalísticos, enquanto a pintura do quadro é o péssimo salário de repórter, justifiquei-me.

– Perdoe-me Bolinha (como ele me chamava), mas não consigo entender essa sua lógica.

– A minha lógica é estabelecer uma dicotomia entre o que é rico e pobre, para curtume dos meus filhos, ou seja, para que eles se fortaleçam com a dor e a delícia, enquanto for..., respondi, encerrando a conversa sobre esse tema.

Mas a verdade é que nem mesmo meu pai dormia na minha antiga casa. Ele não conseguia compreender aquela dubiedade – de luxo e lixo –, daí que preferia o conforto dos hotéis da capital. Meus irmãos, idem! Ninguém queria dormir naquela casa em frangalhos, exceto eu, minha esposa, minha querida mãe e meus filhos, até porque esses não me abandonam quase nunca...

Pois bem: assim que acertei alguns detalhes do contrato com Belisa Ribeiro, ela me enviou as duas primeiras pautas para a primeira semana de trabalho. Gente, eu não acreditei no que li... A primeira matéria seria um “retrato jornalístico” do casal Cristiano Rangel e Luana Piovani, que, naquele ano, acabara de largar Rodrigo Santoro pelo filho do empresário baiano Wesley Rangel.

Quando li essa primeira pauta, respirei fundo e pensei na pureza de Gabriel Pensador! É que esse cara é muito querido por mim e meus filhos: Julia, George e Pedro. Naquele tempo, a canção “Cachimbo da Paz” nos embalava quase como uma espécie de hino doméstico. E utilizo o advérbio “quase” porque minha esposa não gosta dessa canção. Os caretas odeiam seus versos!

“Cachimbo da Paz” é a minha ópera-canção predileta dos anos 90. É impossível ouvi-la sem derramar uma lágrima sequer... E quando eu ouvia Ju, Peo e Geo, ainda crianças, cantando aqueles versos sem entender muito bem o que significava, minha dor era de pranto. Passados tantos anos, eu e meus três filhos ainda adoramos ouvir e cantar seus versos como se fosse a primeira vez:

“Maresia, sente a maresia
maresia, uuu...

Apaga a fumaça do revólver, da pistola
Manda a fumaça do cachimbo pra cachola
Acende, puxa, prende, passa
Índio quer cachimbo, índio quer fazer fumaça”

Olha, o pior veio minutos depois, quando Belisa Ribeiro enviou a segunda pauta da semana: uma entrevista com Dadá – aquela cozinheira de frutos do mar! Sinta a minha maresia... Na manhã seguinte, Belisa me ligou e eu só não fui mais grosseiro do que costumo ser nesse tipo de situação por ser ela a mãe de Gabriel, que não conheço pessoalmente, mas admiro incondicionalmente.

A verdade é que encerrei ali nosso contrato. Belisa não entendeu o motivo que expus para recusá-lo e, naquela manhã, me ligou inúmeras vezes querendo uma melhor explicação. E lá por volta do meio-dia, sei lá porquê, cansou de me ligar... Logo depois, entrei em contato com minha filha Julia Marconi, que estava na casa da avó materna, no Caminho das Árvores.

Saí do jornal A Tarde, ali perto, e fui pegá-la. Fomos para nossa casa (no Litoral Norte) almoçar alguma coisa bacana feita por minha esposa. Durante o trajeto, na Avenida Paralela (a mais movimentada da capital baiana), fui contando a ela sobre o desfecho da minha curta relação com Belisa. Aos 10 anos de idade, Julia reagiu como já era de se esperar naquela circunstância:

– Meu pai, a gente não sabe nem o que vai comer amanhã e o senhor me conta isso...

– Não importa, menina. Sua mãe faz manjar até com a grama da casa, desconversei.

– Como é que o senhor manda a mãe de Gabriel Pensador tomar naquele lugar...?!?!?!

– Eu não fiz isso, garota. Eu apenas disse a ela que estou fora dessas putas, quer dizer, dessas pautas em que o jornalismo dá o rabo...

– Minha mãe já sabe o que você fez?

– Ainda não...

– Ela vai se retar...

– Eu sei!

– Meu pai, o senhor jogou uma excelente oportunidade pela janela!

Essa última observação da minha filha arremessou-me imediatamente no longínquo ano de 1982. Acendi meu cachimbo – fumei isso por 20 anos (entre 1988 e 2008) – e, no silêncio que nos acompanhou na Avenida Paralela, comecei a puxar e soprar a fumaça para fora do carro... E a memória voou sobre o meu passado e presente, até porque o futuro pouco me importa!

Pois bem: lembrei que concluí o científico em 1982 e minha mãe queria que eu viesse fazer uma revisão num cursinho em Salvador. Eu não quis... Preferi ficar queimando baseado em Queimadas, com Julio, Cabé e uns ciganos! Antes de nós, maconha na cidade era algo vinculado apenas a Rui Marques, Zé Filho e os filhos de Odilon (figuras descoladas) nos anos 70!

Naquele finalzinho de 1982, a filha de uma mulher que trabalhava na minha casa começou a me dar mole, mas, por ter um leque considerável de opções (perdoem-me a imodéstia), eu segurava sua onda juvenil. Acontece que a menina de 14 anos era danada demais, e, às manhãzinhas, surgia debaixo do meu cobertor sem que eu notasse o seu inusitado mergulho...

Ela não transava – dizia que era virgem –, mas topava todo tipo de sacanagem por baixo dos lençóis. E assim o foi em novembro e dezembro, ou seja, nos meses que anteciparam meu vestibular. Eu comemorei meus 18 anos no dia 11/12/82 e, para festejar a data, fui com a galera queimar um cachimbo da paz numa das barragens do Rio Itapicuru, ao som de “Day Tripper”!

Quando retornei já era de madrugada, e, como sempre, estava para lá de “Lucy in The Sky With Diamonds”! Acordei, suponho, por volta das 6 horas, com a tal menina já mergulhada no meu lençol. De tão chapado, quase nenhuma atenção lhe dei enquanto ela me “pirulitava” como uma bezerra! Era seu desejo... E ela, inocentemente, ali também adormeceu mais do que devia...

Resultado: a danadinha foi flagrada sob os lençóis horas mais tarde (pela mãe), a ponto de eu ser sacudido da minha cama às 10 horas, por um dos meus irmãos, dizendo-me que eu iria casar com uma garota menor desvirginada. Levantei-me sonolento e, ainda meio baseado, fui à sala. De longe, presenciei meu pai conversando com o pai da garota, com seu sotaque carioca:

– Ele completou ontem 18 anos e a sua filha é menor de idade, não é mesmo?... Então vá à delegacia e denuncie isso, para que ele responda judicialmente. Esse garoto precisa de uma boa cana para aprender o que é a vida...

Essa frase nunca saiu da minha cabeça, mas, por um átimo de segundo, pensei comigo: “Vou conversar com o pai dessa menina, afinal, nunca transei com ela. Ademais, não sei nem o seu nome direito, enfim, neste caso sou mais vítima do que culpado”. Caminhando às pressas dentro da nossa casa, abri uma janela que dava acesso à praça e o alcancei a tempo no passeio:

– O senhor é o pai de Cinha?

– Sou. Quem é você?

– Eu sou Marconi...

O velho partiu para cima de mim, mas a sua esposa o impediu. Ele me disse que iria à delegacia, como recomendara meu pai, e que eu “aguardasse as conseqüências...”. Naquele clima ruim, fiz apenas o que me cabia, afinal, eu não era totalmente um inocente porque admitira as investidas da garota (vide Código Penal), mas, a rigor, não seria um caso de polícia:

– Sua filha era quem me procurava...

– Que nada, seu safado!, reagiu.

– Ela é virgem.

– Você vai pagar pelo que fez, retrucou, sem me dar nenhum crédito.

– Nunca houve nada, senhor..., implorei.

– Nada o quê, seu moleque.

– Não houve quase nada, senhor. Ela vinha aqui só fazer boquete.

– Boquetes?, perguntou o cara, assim mesmo, no plural.

– Boquete, repeti...

– O que é isso?, questionou-me.

A esposa o puxou pelo braço e, naquele momento, senti no seu olhar que ela iria explicar ao marido o que era um bolagato, uma mamada, uma chupeta, enfim, aquela obscenidade. Enfim, não recebi nenhuma intimação da polícia, mas a delegada da nossa casa (minha mãe) me pôs nos bancos dos réus para um dos seus impagáveis sermões. E uma das frases nunca esqueci:

– Você está jogando sua oportunidade pela janela!

Pois é: minha filha repetiu a tal frase 17 anos depois naquele carro e, por isso, fui jogado outra vez no banco dos réus. E narrei essa história de 1982 para ela no trajeto da Avenida Paralela, ressaltando que desde o primeiro dia em que completei 18 anos passei a ser alvo da polícia, da justiça, enfim... E contei-lhe que eu já respondia a uns seis processos no jornalismo.

Julia apenas riu e, de fato, era para ser engraçado, afinal, poucos anos depois eu já seria réu em mais de 30 processos. Fez-se um silêncio entre nós e, sei lá por qual motivo, puxei com muita força a fumaça do cachimbo, que, infelizmente, apagara-se com o vento, deixando vir apenas uma gosma horrorosa de nicotina. E eu cuspi aquilo incontinenti pela janela.

– Meu paaaaaaaaaaai, gritou Julia.

– O que é, menina?

– Veja em quem você cuspiu...

Quando volvi ao lado, avistei um belo Ford preto e a borra escura da nicotina escorrendo-se no vidro traseiro do carro, separando-me do olhar atônito de ACM, numa cena cinematográfica. Olha, desta feita eu tinha certeza que joguei uma bela oportunidade pela janela. O motorista do coronel acelerou, enquanto eu e Julia, aos risos, cantávamos: “Maresia, sente a maresia...”

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Esse episódio está no meu livro “ACM e Adriana – uma história de amor, traição e grampo”, mas com muito mais charme e poética. Senti vontade de trazê-lo hoje porque estive esta semana em Queimadas, e encontrei Tinha – irmã de Cinha – trabalhando na minha casa. Tinha, que foi babá de Julia há uns 20 e poucos anos, disse-me que sua irmã, após décadas em Sampa, voltou para Queimadas.

Calma, gente, não estou atrás de um bolagato!!! Decidi contar essa história para que os mais jovens percebam que é preciso ter coragem de jogar o lixo pela janela, quando muita gente julga ser luxo. Afinal, quem é Cristiano Rangel e Luana Piovani? Ele, condenado e foragido da polícia, por espancar a namorada; ela, sempre sem norte, livrou-se dele para apanhar do Dolabella. Olha...

E eu – o índio “fora-da-lei”, como canta Gabriel Pensador – nem sei por que ainda estou vivo e sarado, contando essa história, depois de detonar policiais, delegados, vereadores, deputados, governadores, jornalistas, juízes, promotores, desembargadores, secretários, senadores e o chefe de todos eles. E não houve uma batalha sequer em que não encontrei os versos de “Cachimbo da Paz”, tipo:

“Foi mandado pro presídio e no caminho assistiu um
Acidente provocado por excesso de cerveja:
Uma jovem que bebeu demais atropelou
Um padre e os noivos na porta da igreja
E pro índio nada mais faz sentido:
Com tantas drogas porque só o seu cachimbo é proibido?”

Meu jornalismo, como me disse Jorge Portugal, entrou para o panteão. Será? Bem, isso pouco me importa diante das rotas que ainda preciso acenar aos meus filhos. Não posso jamais deixar a caretice me contaminar como se fosse um ebola – isso, sim, me instiga demais, porque “navegar é preciso, viver não é preciso”, para quem compreende e vive esse verso de Pessoa.

A verdade é que se eu me deixasse levar pela oferta da mãe de Gabriel Pensador não conseguiria erguer minha obra – insuperável no jornalismo brasileiro. E o que é pior: ACM ainda estaria vivo, poderoso e ferrando todo mundo – tal qual o coronel maranhense José Sarney, que teve a sorte de não conhecer um pitbull para infernizar a sua vida política e pessoal!

Só mais um detalhe: o site de Belisa Ribeiro fechou as portas, ela teve problemas de saúde e praticamente abandonou a carreira. Abriu um novo site em 2010 (www.belisaribeiro.com.br), mas não o abastece. Ah sim: Belisa foi importantíssima na minha vida, porque me propôs uma encruzilhada num momento vital – e eu segui o caminho bacana. Bem, chega de prosa! Vamos ouvir e queimar um “Cachimbo da Paz”.


Marconi De Souza ReisMarconi de Souza Reis - Jornalista e Advogado
Publicado originalmente no facebook do autor. A crônica foi autorizada gentilmente pelo próprio Marconi para o nosso blog. Antes que nossos leitores questionem, os fatos e as ideias contidas no texto são de responsabilidade do autor e não expressam necessariamente a linha editorial do blog. 

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