Torcedores da Portuguesa criticam decisão do STJD |
POR ANDRÉ CASTRO CARVALHO*
Os acontecimentos desta semana trouxeram recordações das minhas primeiras aulas de Direito
e o clássico exemplo do jurista Gustav Radbruch com relação à
razoabilidade na interpretação das normas jurídicas. O caso é pertinente
a um aviso em uma estação ferroviária na Polônia, no qual se proibia a
entrada de pessoas acompanhadas de cães. Só que, em um determinado dia,
surgiu uma pessoa acompanhada de um urso, quem teve a sua entrada
barrada pela autoridade com base na sua interpretação do aviso. A
argumentação utilizada pelo “infrator” é que a regra jurídica proibia a
entrada de cães, e não de outros animais, o que não legitimaria o
obstáculo à sua entrada. Narrada a história aos alunos, há sempre um que
ergue a mão e pergunta: “-E se a pessoa fosse um deficiente visual e
estivesse com um cão guia?”.
Pois são justamente esses debates que
motivam os alunos de Direito a frequentarem os cinco anos de curso e a
discutirem fervorosamente, o resto de suas vidas, casos semelhantes ao
que ora se observa no futebol
brasileiro. Se o mundo jurídico se resumisse exclusivamente a aplicar o
texto da norma tal como escrito, não seria necessário perder tempo com
esses assuntos – aliás, alguém já teria inventado um “app” para Android
ou iOS para resolver qualquer problema jurídico. E, com certeza, ficaria
milionário, deixando muitos profissionais do Direito desempregados!
É
óbvio que nenhuma discussão jurídica que envolva esse tipo de
interpretação mais “livre” das normas é pacífica: entre aqueles que
defendem a literalidade da regra, por conta da segurança jurídica que
ela representa à sociedade, e aqueles que defendem a sua racionalidade e
interpretação conforme o objetivo para o qual foi criada, saem “mortos e
feridos” de qualquer debate nos meios acadêmicos. Mas, fora dessa zona
cinzenta, há sempre casos que produzem uma unanimidade: no exemplo
do mundo canino mencionado, se a norma não for cuidadosamente
interpretada, não haverá, por consequência, a sua razoável aplicação –
por oportuno, não faz muito tempo que o Shopping Iguatemi de Caxias do
Sul foi condenado judicialmente, justamente por barrar a entrada de um
deficiente visual com seu cão-guia.
A literalidade é uma
característica bem típica de sociedades extremamente burocratizadas, tal
como a brasileira. É muito mais seguro e confortável para o aplicador
da norma (em geral, um servidor público) fazer um juízo quase que
“matemático” do que está escrito a avaliar a finalidade da norma ou se a
sua “violação” não representa, na verdade, o seu próprio cumprimento e
efetivação da justiça.
Não me impressiona que esse processo de
“burocratização”, que sempre permeou a vida do brasileiro, agora atinja o
setor desportivo. Afinal, nunca observamos nos noticiários, com tanta
frequência, o nome de autoridades ligadas à justiça desportiva como
nesses últimos anos. Na época em que ingressei na Universidade, poucos
estudantes de Direito sabiam o nome de cor dos ministros do STF; hoje,
basta perguntar a um adolescente que ele vai recitar o nome de pelo
menos uns dois. E já chegamos ao ponto de saber “na ponta da língua” o
nome do procurador geral do Superior Tribunal de Justiça Desportiva,
tamanha a intensidade com a qual o tema “futebol” vem sendo
burocratizado.
Hoje, no exame final, meu ex-professor talvez
fizesse a seguinte pergunta: “Descumprir o art. 214 do Código Brasileiro
de Justiça Desportiva e escalar um jogador irregular, ao final do
segundo tempo, de uma partida que tem pouca importância para o
Campeonato Brasileiro, foi suficiente para produzir o efeito nocivo que a
norma vislumbra evitar?”
Não quero aqui esmiuçar mais a discussão
do caso – até porque há inúmeras variáveis em debate que não estão ao
meu alcance para analisar –, mas me parece evidente que é mais do que
imprescindível analisar a finalidade da norma que impõe a penalidade
pela escalação de jogadores irregulares em uma partida: é para evitar
que um artilheiro seja escalado irregularmente e decida o campeonato, ou
para não deixar que um jogador entre no final do segundo tempo em um
jogo com pouca relevância para o Campeonato? Deixamos a pessoa com o
urso ou o deficiente visual com o cão-guia entrar na estação de trem?
*André Castro Carvalho é doutor em Direito pela USP/ Via blog do Juca Kfouri
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