16 de dezembro de 2013

Cães, ursos e a burocratização do futebol brasileiro

Torcedores da Portuguesa criticam decisão do STJD

POR ANDRÉ CASTRO CARVALHO*

Os acontecimentos desta semana trouxeram recordações das minhas primeiras aulas de Direito e o clássico exemplo do jurista Gustav Radbruch com relação à razoabilidade na interpretação das normas jurídicas. O caso é pertinente a um aviso em uma estação ferroviária na Polônia, no qual se proibia a entrada de pessoas acompanhadas de cães. Só que, em um determinado dia, surgiu uma pessoa acompanhada de um urso, quem teve a sua entrada barrada pela autoridade com base na sua interpretação do aviso. A argumentação utilizada pelo “infrator” é que a regra jurídica proibia a entrada de cães, e não de outros animais, o que não legitimaria o obstáculo à sua entrada. Narrada a história aos alunos, há sempre um que ergue a mão e pergunta: “-E se a pessoa fosse um deficiente visual e estivesse com um cão guia?”.

Pois são justamente esses debates que motivam os alunos de Direito a frequentarem os cinco anos de curso e a discutirem fervorosamente, o resto de suas vidas, casos semelhantes ao que ora se observa no futebol brasileiro. Se o mundo jurídico se resumisse exclusivamente a aplicar o texto da norma tal como escrito, não seria necessário perder tempo com esses assuntos – aliás, alguém já teria inventado um “app” para Android ou iOS para resolver qualquer problema jurídico. E, com certeza, ficaria milionário, deixando muitos profissionais do Direito desempregados!

É óbvio que nenhuma discussão jurídica que envolva esse tipo de interpretação mais “livre” das normas é pacífica: entre aqueles que defendem a literalidade da regra, por conta da segurança jurídica que ela representa à sociedade, e aqueles que defendem a sua racionalidade e interpretação conforme o objetivo para o qual foi criada, saem “mortos e feridos” de qualquer debate nos meios acadêmicos. Mas, fora dessa zona cinzenta, há sempre casos que produzem uma unanimidade: no exemplo do mundo canino mencionado, se a norma não for cuidadosamente interpretada, não haverá, por consequência, a sua razoável aplicação – por oportuno, não faz muito tempo que o Shopping Iguatemi de Caxias do Sul foi condenado judicialmente, justamente por barrar a entrada de um deficiente visual com seu cão-guia.

A literalidade é uma característica bem típica de sociedades extremamente burocratizadas, tal como a brasileira. É muito mais seguro e confortável para o aplicador da norma (em geral, um servidor público) fazer um juízo quase que “matemático” do que está escrito a avaliar a finalidade da norma ou se a sua “violação” não representa, na verdade, o seu próprio cumprimento e efetivação da justiça.

Não me impressiona que esse processo de “burocratização”, que sempre permeou a vida do brasileiro, agora atinja o setor desportivo. Afinal, nunca observamos nos noticiários, com tanta frequência, o nome de autoridades ligadas à justiça desportiva como nesses últimos anos. Na época em que ingressei na Universidade, poucos estudantes de Direito sabiam o nome de cor dos ministros do STF; hoje, basta perguntar a um adolescente que ele vai recitar o nome de pelo menos uns dois. E já chegamos ao ponto de saber “na ponta da língua” o nome do procurador geral do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, tamanha a intensidade com a qual o tema “futebol” vem sendo burocratizado.

Hoje, no exame final, meu ex-professor talvez fizesse a seguinte pergunta: “Descumprir o art. 214 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva e escalar um jogador irregular, ao final do segundo tempo, de uma partida que tem pouca importância para o Campeonato Brasileiro, foi suficiente para produzir o efeito nocivo que a norma vislumbra evitar?”

Não quero aqui esmiuçar mais a discussão do caso – até porque há inúmeras variáveis em debate que não estão ao meu alcance para analisar –, mas me parece evidente que é mais do que imprescindível analisar a finalidade da norma que impõe a penalidade pela escalação de jogadores irregulares em uma partida: é para evitar que um artilheiro seja escalado irregularmente e decida o campeonato, ou para não deixar que um jogador entre no final do segundo tempo em um jogo com pouca relevância para o Campeonato? Deixamos a pessoa com o urso ou o deficiente visual com o cão-guia entrar na estação de trem?

*André Castro Carvalho é doutor em Direito pela USP/ Via blog do Juca Kfouri

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