Mucugê (foto acima), São Félix do Coribe, Camaçari e Itapetinga são as mais críticas; Embasa nega contaminação Foto: Guia Turístico Chapada Diamantina |
Testes realizados pelas empresas de abastecimento de municípios brasileiros mostram que quatro cidades da Bahia consomem um perigoso coquetel com 27 agrotóxicos encontrados na água utilizada pela população. Mucugê, na Chapada Diamantina, Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador (RMS), Itapetinga, Centro Sul, e São Félix do Coribe, no Oeste, estão no topo de uma lista de 271 municípios baianos (veja lista no final da matéria) em que se encontrou pelo menos um agrotóxico na água que abastece as torneiras das cidades.
Obtidos em uma investigação conjunta pela ONG Repórter Brasil, da Agência Pública e da organização suíça Public Eye, os dados dizem respeito ao período entre 2014 e 2017. As informações são parte do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua) do Ministério da Saúde. O estudo detectou em 1.396 municípios no país todos os 27 pesticidas.
No caso de Mucugê, o CORREIO apurou que o número elevado de agrotóxicos na água pode ter relação direta com as plantações de batata, morango e tomate na região. Moradores, biólogos, profissionais de saúde do município e até agricultores confirmam o problema e começam a ver os reflexos na população.
“Aqui tem fazendas grandes com plantações que consomem muito agrotóxico. Contamina solo, lençol freático, água para consumo residencial. A gente vê muita gente com alteração de hormônio, tireoide, muita gente hipertensa e diabética. É difícil comprovar que isso tem relação com o consumo da água, mas que se usa muito agrotóxico na região, com certeza”, disse um especialista na área de saúde de Mucugê, que preferiu não se identificar.
Biólogo e agricultor de Mucugê, Osório Neto diz que a batata, cultura número um da região, junto com as demais, compromete a qualidade da água há muito tempo. “Na realidade os três municípios vizinhos são contaminados com agrotóxicos: Mucugê, Ibicoara e Barra da Estiva. Os agrotóxicos que se usam em batata tem uma concentração maior de agrotóxicos. Isso há muito tempo tá assim. Demorou de estourar”, afirma Osório.
Por outro lado, o próprio Osório, que é agricultor, garante que usa agrotóxicos ecologicamente corretos, específicos para cada cultura. E observa que o uso desses químicos em plantações está reduzindo. “Os próprios agricultores resolveram mudar isso. As fazendas e grandes empresas deixaram de usar produtos altamente tóxicos, passaram a usar moderadamente e agora estão partindo para outro estágio, como fazer rotação de culturas e usar sementes resistentes”, observa.
Mas, admite Osório, ainda vai levar muito tempo para que o solo contaminado de Mucugê se livre dos resíduos dos agentes contaminadores. “Os agrotóxicos altamente pesados foram retirados de combate há mais de dez anos. Tinham dois inseticidas aqui que eram terríveis. Eram faixa vermelha. Depois usaram faixa amarela e agora estão usando material resistente. Acontece que os resíduos que ficaram no solo levam décadas para se dissolver”, acredita o biólogo.
A Estação de Tratamento de Água de Mucugê é de responsabilidade do município. Segundo Edna Moura, bióloga da vigilância sanitária de Mucugê, o município tem a obrigação de fazer coleta de duas amostras de água ao ano, como manda a portaria 2914/2011 – no caso de cidades com menos de 10 mil habitantes, o que não tem ocorrido.
Edna diz que a vigilância tem enviado por conta própria amostras para o Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen), do Governo do Estado. No ano passado, porém, das quatro análises enviadas para o laboratório, Mucugê só teve acesso ao resultado de uma, que não identificou alteração.
Para Edna, é preciso refazer sempre as análises e cobrar do Lacen que divulgue os resultados. Inclusive, 15 dias atrás, novas amostras para analisar agrotóxicos foram enviadas para laboratório. “O resultado mais recente que eu tenho, que foi do ano passado, deu normal, dentro dos parâmetros. Mas, é preciso refazer essas análises”, diz Edna. “Sabemos que estamos em uma região com grandes plantações de batata, de morango e não podemos descartar contaminação. Essa temática está muito complexa e se coloca atualmente na Bahia inteira", argumenta.
O que assusta é a possibilidade de os males trazidos pelos agrotóxicos estarem agindo de forma silenciosa nas populações, sem que se saiba a origem do problema. “Aqui em Mucugê dificilmente você vê alguém dizer que uma alergia ou qualquer outra doença é fruto do consumo de água com agrotóxico. Claro, tem gente que faz essa ligação. Mas, nunca vi ninguém dizer que vai procurar indenização de alguma empresa por conta disso, por exemplo”, diz o biólogo Osório Neto.
O farmacêutico bioquímico responsável pelo sistema de tratamento de Mucugê, Luciano Guedes, questionou a credibilidade da pesquisa e destacou que o procedimento realizado na cidade é o padrão.
"Seguimos rigorosamente todos os critérios estabelecidos. Trabalhamos diuturnamente. Testes de controle interno são feitos a cada duas horas e mensalmente a água é passada por testes, com amostras enviadas ao Lacen e ao laboratório vinculado ao município", disse Luciano.
Para discutir o assunto, a Câmara dos Vereadores da cidade receberá nessa segunda-feira (22) uma reunião entre membros da prefeitura, vigilância sanitária e entidades do meio ambiente para discutir soluções acerca do resultado obtido pelo estudo.
"Temos que fazer análises para ter certeza que a pesquisa fala a verdade. Faremos testes padrões para avaliar isso. O nosso levantamento, no entanto, não encontrou a presença de nenhum agrotóxico", disse o farmacêutico.
Risco na torneira
Dos 27 agrotóxicos encontrados pela pesquisa, 16 são classificados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como extremamente ou altamente tóxicos e 11 estão associados ao desenvolvimento de doenças crônicas como câncer, malformação fetal, disfunções hormonais e reprodutivas. Importante ressaltar que as quatro cidades atingem o número máximo de agrotóxicos, mas há muitas outras com uma quantidade perigosa de químicos, como Macarani, também no Centro Sul, com 25 agrotóxicos, e até a própria Salvador, com 16 pesticidas.
O levantamento revela ainda quais químicos estão acima dos níveis permitidos pela legislação do país e pela regulação europeia, que proíbe 21 dos 27 pesticidas encontrados na água dos brasileiros. Mas, ainda que não ultrapassem os limites legais aqui, a preocupação é de que eles juntos atuem como um coquetel nocivo à saúde.
"Mesmo que um agrotóxico não tenha efeito sobre a saúde humana, ele pode ter quando mistura com outra substância", explica Cassiana Montagner, que pesquisa a contaminação da água no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Os agentes químicos são avaliados isoladamente e ignoram os efeitos das misturas que ocorrem na vida real", diz a médica e toxicologista Virginia Dapper. Ambas são fontes no trabalho feito em conjunto pela Repórter Brasil, Agência Pública e organização suíça Public Eye.
Itapetinga
Em Itapetinga, no Centro-Sul da Bahia, foram detectados 27 agrotóxicos, sendo 11 associadas a doenças crônicas como o câncer. A gestão da água e do esgoto é realizada pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE). O diretor, Alex Dutra, afirmou que o tratamento é "100% seguro e 100% dentro do exigido pelo Ministério da Saúde". Análises são realizadas semestralmente na cidade. Amostras são enviadas para São Paulo.
"Sempre estamos abaixo do nível dos 27 agrotóxicos. Nós fazemos todas as análises sempre e seguimos o recomendado. Se o problema que a entidade sugere é a presença de diversos agrotóxicos em um município, é necessário alterar a exigência do Ministério da Saúde, porque nós seguimos à risca o que eles exigem", opinou.
Dutra afirmou que irá conversar com os representantes da agricultura das cidades de Barra do Choça, Caatiba e de Itapetinga, que são cortados pelo mesmo rio, para verificar os produtos utilizados e buscar melhorias para a população.
Barra do Choça e Caatiba, por exemplo, têm a presença de três agrotóxicos proibidos no Brasil em suas águas, de acordo com o levantamento.
O último relatório de análises da água de Itapetinga foi divulgada no site da cidade. No relatório, todos os agrotóxicos realmente estavam abaixo do nível permitido no país, mas houve a presença dos 27, assim como a pesquisa revelou.
Na Bahia, dos quatro municípios em que foram detectados os 27 agrotóxicos, Camaçari é o único em que se detectou agrotóxicos com concentrações acima do nível permitido no Brasil. Também apenas em Camaçari a Embasa (Empresa Baiana de Água e Saneamento) trata a água. As demais têm gestão própria do abastecimento. Já dentre as 271 cidades com pesticidas a Embasa gerencia a maior parte do fornecimento de água com por exemplo em Salvador.
Em nota, a Embasa informou que as análises realizadas semestralmente pela empresa no período entre 2014/2018 apresentaram valores que demonstram a inexistência de substâncias presentes em agrotóxicos. “Isso significa que os parâmetros de potabilidade da água distribuída pela empresa estão de acordo com as determinações da Portaria de Consolidação nº 05, anexo XX, de 2017, do Ministério da Saúde”, diz a nota.
A secretaria de Saúde de Camaçari foi procurada pelo CORREIO, mas não respondeu até o fechamento desta reportagem. O município de São Félix de Coribe, que possui o tratamento da água através do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE), também foi procurado pelo jornal, mas não deu retorno aos questionamentos da reportagem.
Saúde em alerta
As intoxicações por agrotóxico, em casos graves, podem até gerar coma, parada cardíaca, hemorragia ou perda da visão. Na Bahia, o problema é tratado como uma questão de saúde pública, já que está entre os oito estados do Brasil em consumo do produto.
Os defensivos agrícolas possuem diversos níveis de intoxicação, que podem variar de acordo com a quantidade do produto e tempo de exposição a ele.
O Ministério da Saúde alerta que os venenos podem entrar no corpo por meio de contato com a pele, mucosas, respiração ou ingestão. Os sintomas mais comuns logo após a exposição são mal-estar, dor de cabeça e cansaço. Nos casos mais graves, pode se identificar lesões de pele, tonturas, dificuldade respiratória, podendo ocorrer coma e morte.
Os agroquímicos também podem desenvolver problemas crônicos, que aparecem após algum tempo, como distúrbios como irritabilidade, ansiedade, alterações do sono e da atenção, depressão; dor de cabeça, cansaço, alergias de pele e respiratórias, problemas neurológicos e até alguns tipos de câncer.
O bioquímico Luciano Costa destaca que a presença dos agrotóxicos na água acima do nível permitido pelo Ministério da Saúde pode provocar diversas doenças.
"Funciona como o efeito radioativo, ele vai acumulando no organismo. Ou seja, você pode ter problemas mais graves no futuro quando consome esse tipo de material", disse.
Ele destacou que quanto maior a quantidade ingerida e o tempo de exposição, piores são os sintomas e as consequências para a saúde.
"Não é que a pessoa de imediato vai ter câncer, mas como algumas substâncias são cancerígenas, quando há uma grande exposição, os riscos aumentam", explicou.
A Pública - Agência de Jornalismo Investigativo - e ONG Repórter Brasil, que pesquisaram os dados de contaminação da água, são organizações especializadas em jornalismo investigativo fundadas em 2011 e 2001, respectivamente. A Pública foi o terceiro veículo de comunicação brasileiro mais premiado em 2016 e já conquistou os principais prêmios de Jornalismo do Brasil a exemplo do Tim Lopes, Petrobras e Vladmir Herzog.
Agronegócio questiona dados de contaminação
A divulgação, nessa semana, do resultado do estudo de contaminação de água por agrotóxicos pela Agência Pública, Repórter Brasil e organização Public Eye gerou questionamentos. Além das próprias empresas de tratamento de água desmentirem as informações ou falarem que elas são tendenciosas, associações do setor agrícola também foram contrárias aos dados apresentados.
A Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef), por exemplo, afirmou que os dados foram publicados "de forma alarmista" com pesquisas "absolutamente desconhecidas por autoridades nacionais e internacionais".
"A matéria trata de forma cientificamente distorcida a questão do resíduo de agroquímicos na água dos municípios brasileiros, já que apenas 0,3% das análises realizadas estão acima dos valores máximos estabelecidos pelas autoridades brasileiras. O texto importa parâmetros europeus e faz uma análise fora do contexto da realidade brasileira, um país tropical e com mais de 65% do seu território coberto por vegetação nativa", diz a entidade em nota enviada à imprensa.
A entidade destacou que os agrotóxicos passam por aprovação da Anvisa, MAPA E Ibama e estão "entre os produtos mais regulamentados em todo o mundo" e que o processo de desenvolvimento do produto é longo, podendo chegar a 10 anos, justamente por conta da quantidade de pesquisa necessária para produzi-los.
"Cada país estabelece diferentes limites, pois eles também dependem do uso local; por isso comparar regiões globais não é a maneira mais adequada de verificar a qualidade da água. O monitoramento da qualidade da água deve levar em conta o uso e a exposição, ou seja, avaliando-se cientificamente o risco", opinou a entidade.
Sobre o aumento de toxicidade entre mistura de agrotóxicos, a entidade afirmou que "deve-se ponderar que não se pode esperar que os defensivos com diferentes modos de ações para os organismos alvos apresentem toxicidade acumulativa".
O Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), entidade que representa os fabricantes de agrotóxicos, destacou a avaliação já realizada previamente pela Anvisa, Ibama e Ministério da Agricultura.
“Garante que eles são seguros ao trabalhador, população rural e ao meio ambiente sempre que utilizados de acordo com as recomendações técnicas aprovadas e indicadas em suas embalagens”.
“O setor de defensivos agrícolas realiza iniciativas para garantir a aplicação correta de seus produtos, uma vez que alguns problemas estruturais da agricultura como a falta do hábito da leitura de rótulo e bula e analfabetismo no campo trazem um desafio adicional de cumprimento às recomendações de uso”, acrescentou o sindicato.
A Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba) informou que só vai se pronunciar sobre o caso após apurar os dados e confrontá-los com outros levantamentos.
A Federação da Agricultura e Pecuária do Estado da Bahia e a Agência de Defesa Agropecuária da Bahia, órgão do governo estadual, foram procuradas mas em função do feriadão não foram localizados representantes para se posicionar.
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