Um dos mais importantes cineastas brasileiros, Glauber Rocha, foi servidor da Prefeitura de Salvador. Pouca gente sabe da vida pessoal do artista, para além das telas. Mas a vida profissional dele está registrada em meio a muitos papéis no acervo do Setor de Gestão Documental da Secretaria Municipal de Gestão (Semge), localizado no 2º andar do Instituto de Previdência do Salvador (IPS), em Nazaré. No local há 4 mil caixas de documentos, com 40 mil prontuários de servidores inativos, entre aposentados, falecidos e exonerados. Em 2019, se estivesse vivo, Glauber Rocha completaria 80 anos.
Nascido em 14 de março de 1939 em Vitória da Conquista, no Centro-Sul do estado, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade da Bahia em 1957, mas abandonou os estudos três anos depois para se dedicar ao jornalismo. Exercendo a profissão, foi técnico de Informação e Divulgação na extinta Secretaria de Administração e Finanças (SAF), do dia 18 de março de 1960 até 1º de maio de 1963. Nessa época, quem estava à frente da administração municipal era o prefeito Heitor Dias. O secretário da SAF na ocasião era um dos maiores intelectuais baianos do século XX: o editor, empresário e professor (título que preferia ser chamado) Manoel Pinto de Aguiar, membro da Academia de Letras na Bahia e no Rio de Janeiro, falecido em 1991.
Nos arquivos do Setor de Gestão Documental, a caixa de número 345 contém um envelope com 11 documentos do conquistense. Fichas financeiras, de cadastro, de frequência, guia de inspeção de saúde, memorando e folha corrida revelam alguns dados pessoais. Glauber residia num imóvel na Rua General Labatut, nos Barris, e entrou na Prefeitura sob contrato individual de trabalho. Seus vencimentos mensais chegavam ao valor bruto de 20 mil cruzeiros - pouco mais do que o dobro do salário mínimo instituído em 1960, que era de 9,6 mil cruzeiros. Era uma quantia ínfima para quem quisesse se dar ao luxo de ter um automóvel na época. Para ser ter uma ideia, um Fusca era vendido por 540 mil cruzeiros. Outros modelos populares, como DKW Belcar custava 668 mil cruzeiros e o Willys Dauphine, 530 mil cruzeiros.
Nos arquivos do Setor de Gestão Documental, a caixa de número 345 contém um envelope com 11 documentos do conquistense. Fichas financeiras, de cadastro, de frequência, guia de inspeção de saúde, memorando e folha corrida revelam alguns dados pessoais. Glauber residia num imóvel na Rua General Labatut, nos Barris, e entrou na Prefeitura sob contrato individual de trabalho. Seus vencimentos mensais chegavam ao valor bruto de 20 mil cruzeiros - pouco mais do que o dobro do salário mínimo instituído em 1960, que era de 9,6 mil cruzeiros. Era uma quantia ínfima para quem quisesse se dar ao luxo de ter um automóvel na época. Para ser ter uma ideia, um Fusca era vendido por 540 mil cruzeiros. Outros modelos populares, como DKW Belcar custava 668 mil cruzeiros e o Willys Dauphine, 530 mil cruzeiros.
Foto: internet |
Mesmo com o trabalho na prefeitura - e casado à época com a atriz Helena Ignez - Glauber produziu, em 1961, o seu primeiro longa-metragem, Barravento, que foi filmado na praia do Buraquinho, em Itapuã. A película possui 80 minutos e conta a história de Firmino, um homem que volta à aldeia de pescadores onde foi criado e questiona o misticismo do povo do local. O longa chamou atenção dos críticos e rendeu premiação no Festival de Karlovy Vary, da antiga Tchecoslováquia.
Entre os documentos, há um que indica que, em abril de 1963, Glauber faltou oito vezes ao trabalho, o que lhe custou um desconto de 5,3 mil cruzeiros no salário. Não era pra menos: um ano depois, em 1964, veio Deus e o Diabo na Terra do Sol, um filme que fala sobre levante, catolicismo e extermínio no sertão. A produção, reconhecida internacionalmente, foi sequenciada por outras não menos importantes, como Terra em Transe (1967) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969).
Embora tenha trabalhado para o governo municipal da capital baiana por três anos, foi indiscutivelmente no cinema que Glauber se eternizou. Sua filmografia conta com dez longas e oito curtas, com produções feitas no Brasil e também no exterior. O artista foi um dos idealizadores do Cinema Novo, ao lado de cineastas como Cacá Diegues e Paulo César Sarraceni. O movimento propôs ao cinema a exibição da realidade, com mais conteúdo e menor custo, fora dos padrões hollywoodianos. Destacam-se obras com temas ligados à liberdade de expressão, à indústria do cinema e à crítica social. Ele viveu intensamente, produzindo entre o final dos anos 50 e o início dos anos 80, pensando o cinema como uma arte que pode ser feita com “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”.
Um de seus grandes amigos na juventude, o poeta e jornalista Florisvaldo Mattos, lembra com carinho e saudade dos tempos em que convivia com Glauber. A amizade entre os dois durou mais de 20 anos, de 1957 até a morte do cineasta, em 1981. Embora sem ter convivido com Glauber quando este foi servidor municipal, Florisvaldo lembra de como o amigo via cinema em tudo o que fazia.
Glauber Rocha foi preso em novembro de 1965, por ter participado de um protesto contra a Ditadura Militar, durante uma reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Rio de Janeiro. Permaneceu 23 dias preso e viveu em exílio entre os anos de 1971 e 1976. Ele morreu em agosto de 1981, aos 42 anos, vítima de um choque bacteriano, dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, vindo de Portugal. Na época, seu filho, o também diretor Eryk Rocha, tinha apenas três anos. Há quem diga que Glauber morreu de tristeza pela situação do Brasil. Ele era um dos três filhos de dona Lúcia e seu Adamastor. As irmãs morreram antes: Ana Marcelina, aos 11 anos, vítima de leucemia, e a atriz Anecy Rocha, aos 34 anos, ao cair no fosso de um elevador.
SOBRE DONA LÚCIA, mãe de Glauber
"Eu era rica e, por causa do cinema, fiquei pobre. Mas não me arrependo"
Nascida em Vitória da Conquista, Dona Lúcia Rocha casou-se com Adamastor e, com ele, tiveram três filhos: Ana Marcelina, Glauber e Anecy. Como numa tragédia grega, Dona Lúcia perdeu os três. Ana Marcelina foi a primeira, ainda adolescente, quando uma leucemia a tirou da vida inesperadamente, causando, com isso, imenso choque na família. Em 1976, a talentosa Anecy, atriz no auge de seu sucesso, cai, de repente, no poço do elevador do prédio onde morava. Apenas cinco anos se passariam para que Glauber viesse também a morrer. Como se diz, geralmente os filhos é que enterram os pais, mas no caso dessa mãe coragem, ela enterrou os seus três filhos.
Também o marido, Adamastor (dono daquela loja que ficava logo na entrada da rua Chile, Loja Adamastor), sofrera acidente automobilístico que o deixara sem o vigor de antes, e Dona Lúcia tinha que se desdobrar para manter o equilíbrio da família. O casarão da rua General Labatut, número 14, Barris, era o point onde se reuniam os jovens intelectuais que queriam fazer cinema na Bahia. A pensão de Dona Lúcia, com o passar do tempo, foi ficando famosa a tal ponto de hospedar artistas e intelectuais que vinham do eixo Rio-São Paulo. Devia, o casarão hoje em ruínas, ser tombado como patrimônio cultural baiano.
Dona Lúcia, ao contrário das mães tradicionais, sempre incentivou Glauber a fazer cinema. Adolescente, ela, ao invés de lhe dar um automóvel, como todo jovem deseja, deu a ele, consultado, uma câmera 16mm para filmar. Quando das filmagens de “Barravento” (1962), na praia de Buraquinho, distante da cidade, Dona Lúcia preparava quarenta marmitas para que o pessoal da equipe técnica não ficasse sem almoçar – a produção dava apenas para se fazer o filme e muito mal para alimentar seus participantes. Embora não creditada (o único, segundo ela, que a creditou foi Joaquim Pedro de Andrade em “Os inconfidentes“, de 1972), Dona Lúcia fez alguns figurinos de “Deus e o diabo na terra do sol” e “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969), entre outros filmes do filho querido.
O mais incrível é que Dona Lúcia pulou uma fogueira também no que diz respeito à sua saúde. Há oito anos atrás, quase aos 90, submeteu-se a uma cirurgia de revascularização miocárdica, a famosa ponte de safena. Na sua idade, e a considerar ser uma operação bastante invasiva, Dona Lúcia tirou de letra. E não é a primeira que faz.
Há 20 anos, submeteu-se à mesma cirurgia, sempre com êxito considerável. Uma vez, perguntei a ela o que era colocar uma ponte de safena. Me respondeu: “André, está vendo aquela estrada de asfalto, deite-se ali e sinta um caminhão pesado passar por cima de você!”.
Morto o filho querido, o realizador Glauber Rocha, cujo reconhecimento internacional é indiscutível, Dona Lúcia resolveu se dedicar “full time” à preservação da memória do autor de “Deus e o diabo na terra do sol” (1964), e, para isso, criou o Templo Glauber. A princípio, na primeira metade dos anos 1980 (o cineasta morreu em agosto de 1981), Dona Lúcia pretendeu instalar o acervo memorialístico do filho em Salvador, mas não encontrou apoio. Segundo ela, foi “enrolada” e, no final das contas, para não perder a oportunidade, aceitou o convite do Museu da Imagem e do Som para o depósito do material do filho.
Da Imagem e Som, o Templo Glauber se mudou para um casarão em Botafogo, mas o percurso, para conseguir sobreviver às intempéries, foi cheio de atropelos, principalmente quando, em 1990, houve o confisco promovido por Fernando Collor, que provocou um trauma imenso no funcionamento do templo dedicado ao cineasta. (Do CineEsplendor)
Confira a pequena entrevista realizada por Ricardo Westin, do Jornal do Senado, em 2011.
Como era o filho Glauber Rocha?
Enquanto todas as crianças da idade dele estavam na rua, brincando de peteca ou bola de gude, ele ficava dentro de casa, lendo e escrevendo. Aquilo me chamava a atenção. “Minha mãe, minha cabeça é um vulcão”, ele explicava. Eu entendi que, lendo e escrevendo, ele dava um jeito de expelir todas as ideias que tinha dentro da cabeça. O curioso é que Glauber detestava a escola. Uma vez, ele brigou com a professora e veio para casa dizendo que não queria mais voltar. Ele achava a professora fraca. Queria que eu o ensinasse a ler e escrever. E, de fato, fui eu que o alfabetizei.
Dos filmes de Glauber, qual é seu favorito?
Meu favorito é Barravento. Sabia que ele planejou esse filme quando tinha sete anos? Estávamos passeando na praia de Buraquinho, na Bahia, e ele, criança, disse: “Quando crescer, vou fazer um filme aqui”. Anos mais tarde, ele voltou lá para fazer Barravento. O filme é muito bonito. Eu participei de todos os filmes que Glauber fez no Brasil. Eu costurava as roupas, fazia comida para os atores… Ajudei com dinheiro também. Eu era rica e, por causa do cinema, fiquei pobre. Mas não me arrependo. Valeu a pena. Se outro filho quisesse fazer cinema, ajudaria do mesmo jeito.
A senhora cuida do Tempo Glauber, um espaço que guarda 100 mil documentos. Foi difícil reunir um acervo tão amplo?
Eu comecei a juntar o material quando ele tinha nove anos. O primeiro documento é o roteiro de uma peça de teatro que ele encenou no colégio. Tenho até anotações que ele fazia em papel, amassava e jogava fora. Eu corria ao lixo, pegava o papel, passava com ferro e guardava. Minha missão, hoje, é reunir, conservar e divulgar toda a produção de Glauber. Tenho fotos, poemas, cartas, entrevistas publicadas, desenhos, roteiros que nunca chegaram a ser filmados. As pessoas vêm aqui, interessam-se pelos roteiros, mas ninguém tem coragem de fazer os filmes. Seria muita responsabilidade. Quando Glauber foi morar na Europa, ele me pediu que eu cuidasse de todo o material dele. Jurei que cuidaria de tudo e que, assim, ele nunca morreria. E, de fato, ele nunca morreu – porque o artista nunca morre.
Como superar a perda de três filhos?
Eu tenho uma dificuldade. Mas, não sou uma pessoa depressiva. Quando começo a sentir uma depressão, eu creio em Deus, falo com Ele e resolvo. Sofri muito. Larguei dentro de mim aquela dor. Estou agora comemorando minha trineta, que se chamará Lúcia também. Vivi minha vida toda pela minha família. Glauber, Ana Marcelina, Anecy, Ana Lúcia. Só sobrou a Ana Lúcia. Mas procurei vencer. Quando me perguntam: “Do que Glauber morreu?”, eu digo: “De Brasil”. A época da ditadura… Tudo muito injusto. Foram cinco anos no exílio. No caso de Anecy (a atriz morreu ao cair em poço de elevador aos 34 anos), fiquei com raiva de elevador muito tempo. Mas, entendi que o elevador é como a vida: sobe e desce. (Esta última foi em entrevista do Diego Ponce de Leon, do Correio Braziliense)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Participe do blog deixando sua mensagem, nome e localidade de onde escreve. Agradecemos.