"A política de segurança pública adotada pelo governo da Bahia segue uma tendência nacional de enfrentar a violência praticando a violência"
Nosso blog teve o prazer
de entrevistar, via rede social, o sociólogo Kleber Rosa Cidade. Nascido em
Salvador, Kleber Rosa é uma das grandes referências da luta por justiça social
para as comunidades negras. Como muitos baianos
da capital, Kleber veio de família de baixa renda, superou as dificuldades
através do estudo e da luta social. Formado em Ciências Sociais pela UFBA, Rosa
atua como Professor e Investigador de Polícia no Estado da Bahia. Atualmente é
Secretário Geral da Central Intersindical e conduz uma luta histórica a favor dos
Policiais Civis da Bahia. Apesar da rotina corrida, Rosa adora surfar sempre em
companhia do filho. Não foi fácil, mas depois de três semanas, Kleber Rosa
bateu um papo com o nosso blog. Valeu a pena esperar!
Blog – Kleber Rosa, qual a sua formação
social?
Sou soteropolitano,
nasci e vivi minha primeira infância no bairro do Engenho Velho da Federação,
numa localidade conhecida como Baixa da Égua. Segundo de uma família de cinco
filhos, meu pai nascido em salvador e sustentou a família trabalhando como
estofador, minha mãe nascida em Belo Campo, veio pra capital pra trabalhar como
empregada doméstica e posteriormente como manicure. Tive uma infância muito
pobre e que me obrigou a trabalhar desde cedo pra ajudar no sustento da
família. Depois de passar por algumas oficinas mecânicas, com 14 anos fui
trabalhar com meu pai na estofaria, onde permaneci até quando iniciei meus
estudos na Universidade com 21 anos.
Blog – Como um jovem de baixa renda e do
Nordeste de Amaralina conseguiu ser uma referência para a cidade de Salvador?
Ainda adolescente,
quando comecei a militância no grêmio estudantil do Colégio Manoel Devoto,
percebi que existiam muitas desigualdades e que não havia outra maneira de
enfrentar essa realidade que não fosse através da organização popular. Logo
estava acumulando a militância juvenil na escola com a organização comunitária
no bairro do Nordeste de Amaralina e além da luta por uma educação pública de
qualidade percebi que carecíamos de um sistema de transporte adequado, coleta de
lixo regular, equipamentos urbanos tais como praças, quadras de esportes e
outros, acesso à cultura e arte além de segurança pública e que essa realidade
se estendia por todos os bairros de população negra de Salvador. Logo passei a
militar no Movimento Negro, atuando na cidade como um todo, e já na
Universidade participei do Coletivo de Estudantes Negros Universitários da
Bahia, quando iniciamos o movimento por cotas raciais que culminou na adoção
dessa política para o ingresso de estudantes negros na UNEB e posteriormente
pela UFBA.
Blog – Você é muito ligado à questão da
negritude, autoestima do povo da periferia, como você analisa a participação do
povo negro na construção da cidade de Salvador atualmente?
Salvador é uma cidade de
maioria populacional de negros, marcada pela força da cultura afro. Isso é
perceptível em todas as esferas da formação histórico-cultural da cidade;
língua, cultura alimentar, perfil musical, aspectos religiosos dentre outras.
Esse perfil histórico-cultural de Salvador, fortemente marcado pela força da
população negra, é visivelmente absolvido pelas políticas culturais e de
fomento ao turismo tanto nos órgãos do Estado da Bahia como da cidade de
Salvador. Contudo, essas políticas de absolvição da imagem cultural não se
refletem em inclusão política e social da população Negra. O povo tem seus
valores Histórico-culturais absolvidos e apropriados por uma elite branca, que
se beneficia em todos os aspectos desses valores, facilmente observado no
carnaval, por exemplo, onde toda a musicalidade é produzida por compositores
negros, a festa como um todo é alicerçada em cima de valores artísticos e
culturais afro brasileiros, contudo quem lucra com a festa, quem tem acesso aos
espaços privilegiados são as elites brancas locais, nacionais e internacionais,
enquanto aos negros é reservado o trabalho precário, o subemprego, a violência.
O carnaval é um protótipo da maneira como os negros são tratados pelas elites
brancas dirigentes; os grandes investimentos em infraestrutura, educação,
cultura lazer e outros são direcionados para as camadas mais abastadas da
cidade, vide os recentes investimentos na região do Farol da Barra, Porto e
agora no Rio Vermelho, enquanto que a população negra é empurrada para as
regiões cada vez mais distantes dos centros urbanos e abandonadas pelo poder
público, recursos não chegam, não há investimento em infraestrutura mínima,
facilmente perceptível nos períodos das chuvas, causando desabamentos mortes. O
PDDU, discutido e aprovado recentemente, evidencia um modelo de cidade pensado
para os grandes empreiteiros, visando reservar as regiões mais nobres para os
brancos e condenando os negros à periferia da cidade.
Blog – Você concorda que Salvador, embora
seja apelidada de Roma Negra, constitui duas cidades, bairros ricos e periferias,
que não se mistura?
Sem dúvida alguma, o
espaço urbano da cidade é delimitado de maneira que os recursos públicos ficam
circunscritos às regiões mais valorizadas, gerando ainda mais concentração de
renda para a população que vive próxima do centro e que já reúne os melhores
equipamentos públicos, tais como teatros, cinemas, parques, estádios de
futebol, zoológico dentre outros. Ao mesmo tempo em que não há nenhuma ação
governamental que leve, musicas, lazer, arte, museus, teatros, equipamentos
esportivos ao povo das periferias, lhes é negado um sistema de transporte que
possibilite sua locomoção de forma fácil e barata para possibilitar seu acesso
a esses recursos. Isso revela primeiro que de fato há duas cidades distintas
dentro de uma mesma cidade e que isso é resultado de uma política consciente de
manter o povo afastado dos centros urbanos de maneira que estes permaneçam
reservados a uma pequena elite.
Blog – Por que é tão difícil os
representantes negros dialogarem com as massas da periferia?
Não acho que seja
difícil dialogar com as massas, temos grandes organizações populares que
evidenciam a capacidade do povo de se organizar, resistir e luar contra essa
realidade imposta pelas elites, a exemplo dos movimentos de luta por moradia,
associações de moradores, grupos de capoeira, Candomblés além de outras tantas
formas de organização pujante nas comunidades populares como o movimento
hip-hop. É fato que reverter esse modelo que impera na cidade de Salvador
requer muito mais organização política popular, mas não podemos ignorar que as
elites estão muito bem organizadas pra se manter no poder e perpetuar seus
privilégios, eles tem dinheiro, controlam as emissoras de TVs e Rádios, e por
isso disputam a opinião pública através de uma estratégia de comunicação de
massas, contra as quais não é nada fácil lutar. Ainda assim eu acredito que o
povo encontrará a brecha pra reconstruir a cidade de forma que o espaço urbano
pertença a todos e não a uma pequena elite.
Blog – Quais os maiores problemas que
Salvador enfrenta atualmente?
Difícil identificar um
ou dois problemas que se destaquem no meio de tantos, mas creio que a habitação
está entre os piores problemas enfrentados pela Cidade. Primeiro há um déficit
de moradia tão grande que o programa “Minha casa Minha vida” ainda não
conseguiu atender nem 10% da demanda, segundo pela própria distribuição do
espaço urbano já mencionado acima, que joga parte da população a uma condição
de moradia sub-humana e sem nenhum acesso aos bens e serviços públicos;
terceiro pelos riscos iminentes de tragédias nos períodos chuvosos resultado de
um processo de ocupação espontânea provocado pela falta de políticas pública de
habitação e intensificado pela falta de infraestrutura urbana nos locais dessas
moradias populares. Outro aspecto que merece destaque é a mobilidade urbana. O
crescimento desordenado da cidade, somado ao aumento populacional, fez com que
a áreas mais distantes do centro fossem sendo ocupadas. Esse crescimento gerou
uma demanda para o sistema de transporte público que não foi atendida. Somado a
isso, temos o grande crescimento da quantidade de veículos sem haver
investimento na infraestrutura viária. A soma desses fatores fez com que a
mobilidade urbana entrasse em colapso, mais uma vez prejudicando,
principalmente as pessoas que vivem nos locais mais distantes do centro da
cidade. Por fim, um terceiro problema grave é a segurança pública. Salvador se
tornou uma das cidades mais violentas do mundo, a espação do tráfico de drogas
gerou um aumento significativo de homicídios e elevou a sensação de insegurança
na cidade. Embora o Estado seja o maior responsável pela segurança policial, há
o aspecto social do enfrentamento à violência que deve ser assumido pelo poder
municipal, o investimento em educação integral, um bom programa de inclusão
social, o fomento á pratica de esportes, um programa de primeiro emprego são
alguns elementos que podem ser utilizados para tirar os jovens do caminho das
drogas e da criminalidade. Isso sem considerar que urge uma reestruturação da
relação que o Estado estabeleceu para enfrentar o tráfico e consumo de drogas.
Essa guerra é insana e sem sentido, o consumo tem que ser tratado como problema
de saúde pública e a produção e comercialização tem que ser descriminalizado e
regulamentado pelo Estado.
Blog – Como analisa o governo de ACM Neto?
ACM Neto representa as
oligarquias que dominam as esferas políticas e econômicas desde sempre. Sua
gestão é a cópia fiel das gestões carlistas anteriores nos Municípios e no
Estado e reflete justamente o seu papel como representante dessas oligarquias.
Governa para as classes dominantes, pensa o presente e o futuro da cidade para
atender a interesses desses grupos e renega a população negra ao abandono e a
exclusão política e social.
Blog – E o governo de Rui Costa no Estado?
Acho cedo pra avaliar o
governo de Ruy Costa, mas se pensarmos que ele representa a continuidade do que
tem sido o governo do PT desde Wagner, não podemos esperar grandes coisas. As
grandes questões sociais que necessitam profundas transformações não foram
tocadas por eles. Reforma agrária, política de valorização e fortalecimento das
comunidades quilombolas, habitação, valorização dos servidores públicos, em
fim. O governo Ruy segue a mesma política do petista implementada a nível
nacional e com isso abandona sua agenda histórica construída pelos
trabalhadores brasileiros e depositada no PT.
Kleber debatendo mudanças na Segurança Pública da Bahia |
Blog – Nas redes sociais, você se destaca
defendendo direitos dos policiais. Que modelo de política você defende para a
Bahia?
A política de segurança
pública adotada pelo governo da Bahia segue uma tendência nacional de enfrentar
a violência praticando a violência. Esse modelo já deu todos os sinais de
fracasso, mas os governos insistem no erro. A lógica da guerra às drogas só
promove a morte, tanto dos jovens que estão no tráfico quanto dos policiais que
estão no combate ao tráfico. Sou um defensor da descriminalização das drogas e
da mudança do foco do problema do consumo para a esfera da saúde pública. O que
o Estado tem que fazer é assumir uma política de desestimulo ao uso como faz
com o cigarro e que não faz com o álcool. Por isso, cada vez menos pessoas
fumam e cada vez mais e mais cedo as pessoas bebem. Para além disso, precisa-se
reestruturar urgentemente as polícias. Os policiais não têm carreira, passam trinta,
quarenta anos repetindo exatamente a mesma coisa, sofrem brutalmente com
assédio moral das “castas” que dirigem as policias (Oficiais e Delegados),
ganham baixos salários que não condiz com a complexidade e importância da
função, não tem formação continuada, vivem em péssimas condições de trabalho
tanto no interior quanto na capital. Defendo a desmilitarização como forma de
garantir ao policial direitos e dignidades conforme reza a nossa constituição e
também garantir ao cidadão uma polícia voltada para proteção e a garantia de
direitos; Carreira Única, de maneira que o policial possa passar por todas as
etapas da função policial, podendo chegar aos postos de direção, o que não
ocorre no atual modelo; ciclo completo, de maneira que o mesmo policial que
iniciou a ação no fato delituoso possa concluir e levar à justiça, dando mais
eficiência e celeridade ao processo jurídico.
Blog – Setores do Congresso lutam para
alterar a maioridade penal que hoje é de 18 para 16 anos. De fato esta medida
ajuda a controlar a violência cometida por adolescentes?
Em nada essa medida irá
ajudar na diminuição dos índices de violência. O Brasil tem hoje uma das
maiores populações carcerárias do mundo, ocupando o terceiro ou quarto lugar.
Esse dado, por si só já é suficiente para atestar que não é encarcerando, que
iremos diminuir a violência, mas sim, adotando políticas de prevenção. Esses
garotos que querem levar para o cárcere precisam é de escolas de qualidade, um
programa de prática de esportes, acesso à cultura e a arte. É dessa forma que
se evita que jovens sejam abandonados pelo Estado e jogados na marginalidade.
Blog – Você é otimista em relação ao futuro
da cidade de Salvador?
Não diria otimista, mas
sim esperançoso. Temos hoje a polarização de dois grupos políticos que tendem a
protagonizar a disputa pelo governo municipal. Ambos não atendem as
expectativas populares de transformação da cidade em um local que se já
planejado para o povo em geral, um por representar as elites políticas e
econômicas e o outro por já ter demostrado na prática que já abandonou suas bandeiras
populares históricas. Minha esperança vem da crença de que os ideais populares
de transformação da sociedade permanecem necessários e vivos e isso se
refletirá em ação política e protagonismo popular.
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