4 de setembro de 2015

Entrevista: Kleber Rosa não poupa ninguém.

"A política de segurança pública adotada pelo governo da Bahia segue uma tendência nacional de enfrentar a violência praticando a violência"

Foto: Arquivo Pessoal
Nosso blog teve o prazer de entrevistar, via rede social, o sociólogo Kleber Rosa Cidade. Nascido em Salvador, Kleber Rosa é uma das grandes referências da luta por justiça social para as comunidades negras.  Como muitos baianos da capital, Kleber veio de família de baixa renda, superou as dificuldades através do estudo e da luta social. Formado em Ciências Sociais pela UFBA, Rosa atua como Professor e Investigador de Polícia no Estado da Bahia. Atualmente é Secretário Geral da Central Intersindical e conduz uma luta histórica a favor dos Policiais Civis da Bahia. Apesar da rotina corrida, Rosa adora surfar sempre em companhia do filho. Não foi fácil, mas depois de três semanas, Kleber Rosa bateu um papo com o nosso blog. Valeu a pena esperar!


Blog – Kleber Rosa, qual a sua formação social?

Sou soteropolitano, nasci e vivi minha primeira infância no bairro do Engenho Velho da Federação, numa localidade conhecida como Baixa da Égua. Segundo de uma família de cinco filhos, meu pai nascido em salvador e sustentou a família trabalhando como estofador, minha mãe nascida em Belo Campo, veio pra capital pra trabalhar como empregada doméstica e posteriormente como manicure. Tive uma infância muito pobre e que me obrigou a trabalhar desde cedo pra ajudar no sustento da família. Depois de passar por algumas oficinas mecânicas, com 14 anos fui trabalhar com meu pai na estofaria, onde permaneci até quando iniciei meus estudos na Universidade com 21 anos.

Blog – Como um jovem de baixa renda e do Nordeste de Amaralina conseguiu ser uma referência para a cidade de Salvador?

Ainda adolescente, quando comecei a militância no grêmio estudantil do Colégio Manoel Devoto, percebi que existiam muitas desigualdades e que não havia outra maneira de enfrentar essa realidade que não fosse através da organização popular. Logo estava acumulando a militância juvenil na escola com a organização comunitária no bairro do Nordeste de Amaralina e além da luta por uma educação pública de qualidade percebi que carecíamos de um sistema de transporte adequado, coleta de lixo regular, equipamentos urbanos tais como praças, quadras de esportes e outros, acesso à cultura e arte além de segurança pública e que essa realidade se estendia por todos os bairros de população negra de Salvador. Logo passei a militar no Movimento Negro, atuando na cidade como um todo, e já na Universidade participei do Coletivo de Estudantes Negros Universitários da Bahia, quando iniciamos o movimento por cotas raciais que culminou na adoção dessa política para o ingresso de estudantes negros na UNEB e posteriormente pela UFBA.

Blog – Você é muito ligado à questão da negritude, autoestima do povo da periferia, como você analisa a participação do povo negro na construção da cidade de Salvador atualmente?

Salvador é uma cidade de maioria populacional de negros, marcada pela força da cultura afro. Isso é perceptível em todas as esferas da formação histórico-cultural da cidade; língua, cultura alimentar, perfil musical, aspectos religiosos dentre outras. Esse perfil histórico-cultural de Salvador, fortemente marcado pela força da população negra, é visivelmente absolvido pelas políticas culturais e de fomento ao turismo tanto nos órgãos do Estado da Bahia como da cidade de Salvador. Contudo, essas políticas de absolvição da imagem cultural não se refletem em inclusão política e social da população Negra. O povo tem seus valores Histórico-culturais absolvidos e apropriados por uma elite branca, que se beneficia em todos os aspectos desses valores, facilmente observado no carnaval, por exemplo, onde toda a musicalidade é produzida por compositores negros, a festa como um todo é alicerçada em cima de valores artísticos e culturais afro brasileiros, contudo quem lucra com a festa, quem tem acesso aos espaços privilegiados são as elites brancas locais, nacionais e internacionais, enquanto aos negros é reservado o trabalho precário, o subemprego, a violência. O carnaval é um protótipo da maneira como os negros são tratados pelas elites brancas dirigentes; os grandes investimentos em infraestrutura, educação, cultura lazer e outros são direcionados para as camadas mais abastadas da cidade, vide os recentes investimentos na região do Farol da Barra, Porto e agora no Rio Vermelho, enquanto que a população negra é empurrada para as regiões cada vez mais distantes dos centros urbanos e abandonadas pelo poder público, recursos não chegam, não há investimento em infraestrutura mínima, facilmente perceptível nos períodos das chuvas, causando desabamentos mortes. O PDDU, discutido e aprovado recentemente, evidencia um modelo de cidade pensado para os grandes empreiteiros, visando reservar as regiões mais nobres para os brancos e condenando os negros à periferia da cidade.

Blog – Você concorda que Salvador, embora seja apelidada de Roma Negra, constitui duas cidades, bairros ricos e periferias, que não se mistura?

Sem dúvida alguma, o espaço urbano da cidade é delimitado de maneira que os recursos públicos ficam circunscritos às regiões mais valorizadas, gerando ainda mais concentração de renda para a população que vive próxima do centro e que já reúne os melhores equipamentos públicos, tais como teatros, cinemas, parques, estádios de futebol, zoológico dentre outros. Ao mesmo tempo em que não há nenhuma ação governamental que leve, musicas, lazer, arte, museus, teatros, equipamentos esportivos ao povo das periferias, lhes é negado um sistema de transporte que possibilite sua locomoção de forma fácil e barata para possibilitar seu acesso a esses recursos. Isso revela primeiro que de fato há duas cidades distintas dentro de uma mesma cidade e que isso é resultado de uma política consciente de manter o povo afastado dos centros urbanos de maneira que estes permaneçam reservados a uma pequena elite.

Blog – Por que é tão difícil os representantes negros dialogarem com as massas da periferia?

Não acho que seja difícil dialogar com as massas, temos grandes organizações populares que evidenciam a capacidade do povo de se organizar, resistir e luar contra essa realidade imposta pelas elites, a exemplo dos movimentos de luta por moradia, associações de moradores, grupos de capoeira, Candomblés além de outras tantas formas de organização pujante nas comunidades populares como o movimento hip-hop. É fato que reverter esse modelo que impera na cidade de Salvador requer muito mais organização política popular, mas não podemos ignorar que as elites estão muito bem organizadas pra se manter no poder e perpetuar seus privilégios, eles tem dinheiro, controlam as emissoras de TVs e Rádios, e por isso disputam a opinião pública através de uma estratégia de comunicação de massas, contra as quais não é nada fácil lutar. Ainda assim eu acredito que o povo encontrará a brecha pra reconstruir a cidade de forma que o espaço urbano pertença a todos e não a uma pequena elite.

Blog – Quais os maiores problemas que Salvador enfrenta atualmente?

Difícil identificar um ou dois problemas que se destaquem no meio de tantos, mas creio que a habitação está entre os piores problemas enfrentados pela Cidade. Primeiro há um déficit de moradia tão grande que o programa “Minha casa Minha vida” ainda não conseguiu atender nem 10% da demanda, segundo pela própria distribuição do espaço urbano já mencionado acima, que joga parte da população a uma condição de moradia sub-humana e sem nenhum acesso aos bens e serviços públicos; terceiro pelos riscos iminentes de tragédias nos períodos chuvosos resultado de um processo de ocupação espontânea provocado pela falta de políticas pública de habitação e intensificado pela falta de infraestrutura urbana nos locais dessas moradias populares. Outro aspecto que merece destaque é a mobilidade urbana. O crescimento desordenado da cidade, somado ao aumento populacional, fez com que a áreas mais distantes do centro fossem sendo ocupadas. Esse crescimento gerou uma demanda para o sistema de transporte público que não foi atendida. Somado a isso, temos o grande crescimento da quantidade de veículos sem haver investimento na infraestrutura viária. A soma desses fatores fez com que a mobilidade urbana entrasse em colapso, mais uma vez prejudicando, principalmente as pessoas que vivem nos locais mais distantes do centro da cidade. Por fim, um terceiro problema grave é a segurança pública. Salvador se tornou uma das cidades mais violentas do mundo, a espação do tráfico de drogas gerou um aumento significativo de homicídios e elevou a sensação de insegurança na cidade. Embora o Estado seja o maior responsável pela segurança policial, há o aspecto social do enfrentamento à violência que deve ser assumido pelo poder municipal, o investimento em educação integral, um bom programa de inclusão social, o fomento á pratica de esportes, um programa de primeiro emprego são alguns elementos que podem ser utilizados para tirar os jovens do caminho das drogas e da criminalidade. Isso sem considerar que urge uma reestruturação da relação que o Estado estabeleceu para enfrentar o tráfico e consumo de drogas. Essa guerra é insana e sem sentido, o consumo tem que ser tratado como problema de saúde pública e a produção e comercialização tem que ser descriminalizado e regulamentado pelo Estado.

Blog – Como analisa o governo de ACM Neto?

ACM Neto representa as oligarquias que dominam as esferas políticas e econômicas desde sempre. Sua gestão é a cópia fiel das gestões carlistas anteriores nos Municípios e no Estado e reflete justamente o seu papel como representante dessas oligarquias. Governa para as classes dominantes, pensa o presente e o futuro da cidade para atender a interesses desses grupos e renega a população negra ao abandono e a exclusão política e social.

Blog – E o governo de Rui Costa no Estado?

Acho cedo pra avaliar o governo de Ruy Costa, mas se pensarmos que ele representa a continuidade do que tem sido o governo do PT desde Wagner, não podemos esperar grandes coisas. As grandes questões sociais que necessitam profundas transformações não foram tocadas por eles. Reforma agrária, política de valorização e fortalecimento das comunidades quilombolas, habitação, valorização dos servidores públicos, em fim. O governo Ruy segue a mesma política do petista implementada a nível nacional e com isso abandona sua agenda histórica construída pelos trabalhadores brasileiros e depositada no PT.

Kleber debatendo mudanças na Segurança Pública da Bahia
Blog – Nas redes sociais, você se destaca defendendo direitos dos policiais. Que modelo de política você defende para a Bahia?

A política de segurança pública adotada pelo governo da Bahia segue uma tendência nacional de enfrentar a violência praticando a violência. Esse modelo já deu todos os sinais de fracasso, mas os governos insistem no erro. A lógica da guerra às drogas só promove a morte, tanto dos jovens que estão no tráfico quanto dos policiais que estão no combate ao tráfico. Sou um defensor da descriminalização das drogas e da mudança do foco do problema do consumo para a esfera da saúde pública. O que o Estado tem que fazer é assumir uma política de desestimulo ao uso como faz com o cigarro e que não faz com o álcool. Por isso, cada vez menos pessoas fumam e cada vez mais e mais cedo as pessoas bebem. Para além disso, precisa-se reestruturar urgentemente as polícias. Os policiais não têm carreira, passam trinta, quarenta anos repetindo exatamente a mesma coisa, sofrem brutalmente com assédio moral das “castas” que dirigem as policias (Oficiais e Delegados), ganham baixos salários que não condiz com a complexidade e importância da função, não tem formação continuada, vivem em péssimas condições de trabalho tanto no interior quanto na capital. Defendo a desmilitarização como forma de garantir ao policial direitos e dignidades conforme reza a nossa constituição e também garantir ao cidadão uma polícia voltada para proteção e a garantia de direitos; Carreira Única, de maneira que o policial possa passar por todas as etapas da função policial, podendo chegar aos postos de direção, o que não ocorre no atual modelo; ciclo completo, de maneira que o mesmo policial que iniciou a ação no fato delituoso possa concluir e levar à justiça, dando mais eficiência e celeridade ao processo jurídico.

Blog – Setores do Congresso lutam para alterar a maioridade penal que hoje é de 18 para 16 anos. De fato esta medida ajuda a controlar a violência cometida por adolescentes?

Em nada essa medida irá ajudar na diminuição dos índices de violência. O Brasil tem hoje uma das maiores populações carcerárias do mundo, ocupando o terceiro ou quarto lugar. Esse dado, por si só já é suficiente para atestar que não é encarcerando, que iremos diminuir a violência, mas sim, adotando políticas de prevenção. Esses garotos que querem levar para o cárcere precisam é de escolas de qualidade, um programa de prática de esportes, acesso à cultura e a arte. É dessa forma que se evita que jovens sejam abandonados pelo Estado e jogados na marginalidade.

Blog – Você é otimista em relação ao futuro da cidade de Salvador?

Não diria otimista, mas sim esperançoso. Temos hoje a polarização de dois grupos políticos que tendem a protagonizar a disputa pelo governo municipal. Ambos não atendem as expectativas populares de transformação da cidade em um local que se já planejado para o povo em geral, um por representar as elites políticas e econômicas e o outro por já ter demostrado na prática que já abandonou suas bandeiras populares históricas. Minha esperança vem da crença de que os ideais populares de transformação da sociedade permanecem necessários e vivos e isso se refletirá em ação política e protagonismo popular.


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