"Os governos estaduais e municipais também são culpados, sobretudo porque gangrenados por esquemas de corrupção que desviam os recursos da educação e da cultura para enriquecimento privado"
Cenas do vídeo que mostra o linchamento de Fabiane Maria de Jesus, no Guarujá |
Não sou membro da Comissão de de Segurança Publica e de Combate
ao Crime Organizado, mas, como deputado do PSOL - partido que
apresentou à Procuradoria Geral da República uma representação contra a
jornalista Rachel Sheherezade quando esta apoiou publicamente o
linchamento como resposta à sensação de insegurança nas grandes cidades -
e como parlamentar que recentemente aprovou requerimento na Comissão de
Direitos Humanos e Minorias para discutir a situação da violência
urbana no Rio de Janeiro, além de (e antes de qualquer coisa) como
cidadão que se encontra estarrecido com os recentes casos de linchamento
no país, não pude deixar de participar da audiência pública que nesta
terça-feira à tarde debateu o tema “justiça com as próprias mãos”.
Um dos pontos que achei importante levantar em
minha intervenção foi o de que, se não podemos tratar do racismo que
hoje perpassa as relações sociais no Brasil sem levar em conta a
escravidão que, por séculos, moveu a economia do Brasil; se não podemos
caracterizar as elites de hoje sem pensarmos na aristocracia de outrora -
e ambas têm a perspectiva dos privilégios e não do direito -, também
não pormos tratar dos recentes linchamentos sem levar em conta nossa
história mais recente.
As duas décadas da ditadura
militar foram tempo suficiente para criar uma cultura na qual certas
pessoas são desprovidas de dignidade a ponto de serem vítimas de um
crime de lesa-humanidade como a tortura, que continua sendo praticada em
delegacias, prisões e nas comunidades mais pobres onde a polícia tem
uma presença maior ou onde vigoram estados paralelos como o tráfico e a
milícia. Quando pensarmos no "justiçamento" hoje praticado no Brasil,
não podemos nos esquecer no modelo de desenvolvimento implantado pela
ditadura militar, que provocou migração de pessoas do campo para as
grandes cidades, criando as grandes periferias urbanas e todos os
problemas que elas enfrentam.
Em que pesem os avanços sociais
inegáveis da chamada "era Lula", o Estado ainda não pagou o débito em
educação, saúde, moradia de qualidade, acesso à cultura e à justiça com
esse contingente. Sobretudo o débito com a educação de qualidade, que,
junto à cultura, tem papel central na construção da ‘vida com
pensamento’ e do processo civilizatório. Podemos até ter massificado a
educação, mas a qualidade da educação oferecida ainda é baixa. Só uma
Educação de qualidade e um acesso amplo a equipamentos de cultura,
esporte e lazer – algo a que a grande maioria da população não tem
acesso - podem produzir a cultura do respeito à vida e à diversidade
humanas.
Não se pode pensar nos
linchamentos sem pensar em como a ausência do Estado permitiu, nas
periferias, do início do anos 80 até os anos 90, a emergência dos
chamados “embriões de Estado”: o narcotráfico e as milícias, que também
promovem “justiçamento” à margem do Estado Democrático de Direito e no
vácuo da legalidade.
O caldeirão cultural de
violências decorrentes dessa negligência institucional também tem sua
parcela de responsabilidade nesses atos de justiçamento.
Qualquer um de nós pode ser
vítima de linchamento, mas, na prática, as pessoas mais pobres estão
mais vulneráveis a ele porque, historicamente, foram alijadas de
direitos e descartadas da comunidade de direitos por do ponto discursos
que as desqualificam como humanos. Não há exclusão da comunidade de
direito sem, antes, haver desqualificação das pessoas excluídas. Os
telejornais e, antes, a mídia impressa desqualificam as populações mais
pobres, associando-as à criminalidade e à violência urbana - o que
justifica a presença apenas da polícia como braço do Estado nessas
comunidades. Se estas pessoas são desqualificadas e expulsas da
comunidades de direitos, a polícia, ainda que saindo dessa própria
comunidade, não as respeitará como sujeitos. Isso fica muito claro
quando lembramos dos casos Cláudia, arrastada em um carro da polícia,
Amarildo, ambos ocorridos no estado do Rio de Janeiro.
Nós, parlamentares, juramos
proteger os princípios da Constituição Cidadã no dia da nossa posse.
Mas, a despeito deste juramento, muitos colegas levantam as bandeiras
“bandido bom é bandido morto” e “direitos humanos são direitos de
bandidos” com uma desonestidade intelectual e falta de discernimento - e
isso, de alguma forma, tem relação com os linchamentos.
Algo que não podemos desprezar no
linchamento do Guarujá, por exemplo, é o fato de a vítima ter sido,
antes, alvo de uma difamação nas redes sociais digitais que a
transformara em sequestradora de crianças para sacrifício em rituais de
"magia negra". Ora, além de a expressão "magia negra" ter uma forte
conotação racista, já que cunhada pelos colonizadores brancos e cristãos
para designar as práticas religiosas dos negros escravos, hoje ela é
confundida no senso comum com as próprias religiões de matriz africana,
graças à difamação e perseguição que estas sofrem por parte de muitos
pastores e obreiros neopentecostais em cultos e telecultos. Ou seja,
está claro que os linchamentos têm relação com a promoção da ignorância e
com a decorrente prática da intolerância.
Se o governo federal já tivesse,
por meio de uma articulação entre Ministério da Educação e das
secretarias de Promoção da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos,
implementado a Lei 10.639 (que inclui o estudo e a valorização da
herança cultural africana no currículo escolar), talvez - talvez - o
linchamento do Guarujá não tivesse ocorrido. Se os percentuais do
orçamento para educação e a cultura fossem maiores que o atuais
(pífios!) e empregados em políticas públicas de qualidade nos três
níveis da federação, talvez um contigente maior soubesse distinguir uma
difamação nas redes sociais de uma notícia apurada ou denúncia
fundamentada e não saísse espancando pessoas por causa de boatos que
despertam seus preconceitos.
Não quero dizer, com isso, que a
culpa seja só do governo federal. Eu seria desonesto e injusto se o
dissesse. Os governos estaduais e municipais também são culpados,
sobretudo porque gangrenados por esquemas de corrupção que desviam os
recursos da educação e da cultura para enriquecimento privado. Como
expliquei acima, o poder Legislativo também tem sua parcela de culpa;
parte da mídia também (uma grande parcela!) e, claro, o poder
Judiciário, que ainda funciona de maneira seletiva e exclui os mais
pobres do acesso à justiça e à mediação de conflitos.
Mas jamais nos esqueçamos de que
governos, poderes, mídia e instruções são pessoas; e de que, em última
instância, colocar-se contra "justiçamentos" e linchamentos é um questão
individual. Que o defensor e praticante do linchamento consiga, num
lampejo de lucidez, imaginar que, dado esse caldeirão de ignorância e
ódio, a próxima vítima pode ser ele mesmo. E aí?
Jean Wyllys é Deputado Federal - PSol.
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